A ação de condenação da administração à prática do ato legalmente devido corresponde a uma das mudanças de paradigma no nosso Contencioso Administrativo, que caminha para uma plena jurisdição sem limitações. Este poder de condenação da Administração à emissão de atos administrativos ilegalmente omitidos ou recusados é uma das concretizações do princípio da plena jurisdição dos tribunais administrativos que o CPTA veio, definitivamente, consagrar, conferindo-lhes todos os poderes que são próprios e naturais da função jurisdicional, permitindo aos particulares ir mais além do que o mero reconhecimento do seu direito. Assim, tal como afirma o ilustre Dr. Vasco Pereira da Silva, foi na sequência deste longo “processo
terapêutico”, que o Contencioso Administrativo português tanto se “sentou” no
divã da Constituição da República Portuguesa, como no “divã da Europa”.
A consagração
da possibilidade de “interpelar a Administração a cumprir” foi introduzida no CPTA como forma de
colmatar uma lacuna, através da criação de um meio de reação contra as omissões
administrativas, leia-se: violação do dever de decidir. O legislador não
limitou o âmbito de condenação à prática do ato devido às situações de omissão
administrativa, incluindo também no Artigo 67.º outras e inovadoras (com a
alteração ao CPTA) situações, havendo um alargamento das mesmas: quando tenha sido praticado um ato administrativo de indeferimento ou de recusa de apreciação do
requerimento ou tenha sido
praticado ato administrativo de conteúdo positivo que não satisfaça
integralmente a pretensão do interessado - aqui se encontra a novidade face ao
CPTA anteriormente vigente.
Conforme escreve Mário Aroso
de Almeida, “ (…) os processos de condenação à prática de atos administrativos
são processos de geometria variável, no sentido em que não têm todos a mesma
configuração, nem conduzem todos à emissão de pronúncias judiciais com idêntico
alcance.”
Mas então, há que abrir as janelas à discussão
pública, de modo a observarmos de uma forma mais clara. O modo como a jurisprudência faz uso destes poderes é uma questão
fulcral para apreciar a efetividade da reforma do contencioso administrativo. Precisamente
neste contraponto, deparamo-nos com a colisão de duas ideias fundamentais que,
não sendo devidamente delimitadas, poderão levar à constituição de novos
traumas (já não da infância). Uma tem que ver com a interdição de o tribunal se
imiscuir no espaço próprio mais íntimo da Administração, em homenagem ao
princípio da separação e da interdependência de poderes (Art. 3º do CPTA). A
outra, com a necessidade de o tribunal dizer e aplicar o direito em toda a
extensão com que normas e princípios jurídicos sejam chamados a intervir na
dirimição de litígios jurídico-administrativos e, por conseguinte, de
determinar todas as vinculações a observar pela Administração, na emissão do
ato devido.
Assim, no que respeita a esta
figura híbrida, o primeiro passo a ter em conta diz respeito ao tipo de solução
em causa, se vinculada ou discricionária, ao que se seguirá a reflexão sobre o
caso material concreto. Importante é perceber que o alcance do conteúdo da
sentença está sujeito a uma graduação. Para melhor entender a questão, torna-se
imperativo interpretar aquilo que o doravante CPTA estabelece em relação a esta
temática.
O Artigo 71.º do CPTA elenca os poderes de
pronúncia do tribunal, com a respetiva cláusula geral no seu nº 1. A questão
controversa centra-se, essencialmente, nos números que se seguem. Nos termos do
n.º 2, quando a emissão do ato envolva a «formulação de valorações próprias do exercício da
função administrativa», o juiz limitar-se-á a uma condenação genérica, com
a indicação dos parâmetros que possa retirar das normas jurídicas aplicáveis.
Isto quer dizer que, quando haja mais do que uma solução possível, o tribunal
não pode condenar a Administração a praticar o ato pretendido com o conteúdo
totalmente definido, circunstância em que muita doutrina considera estarmos
perante uma situação de redução da discricionariedade a zero ou
paralisia da discricionariedade (que vai buscar as suas raízes à doutrina
alemã).
Todavia, note-se que, tal como afirma Mário Aroso de Almeida, os
poderes do tribunal não se encontram limitados, pois mesmo nestes casos, o
pedido é de condenação e o tribunal deve verificar se a omissão ou a recusa
foram ilegais e, se for caso disso, condenar a administração a praticar o ato
devido (artigo 71. º, n.º 1), o que demonstra, desde já, uma clara
preponderância do poder judicial como poder de controlo, pois o tribunal, mesmo
assim, deve indicar a forma correta de exercício do poder discricionário, no
caso concreto, estabelecer o alcance e os limites das vinculações legais. Daqui
resulta uma sentença mista que combina uma vertente condenatória estrita, no
que respeita à pratica do ato administrativo, assim como no que se refere aos
aspetos vinculados do poder em questão, com uma vertente declarativa, ou de
simples apreciação, naquilo que respeita aos elementos discricionários do
poder, permitindo ao tribunal orientar a administração quanto à correção
jurídica das opções que lhe cabe tomar.
No sentido convergente, o n.º
3 do Artigo em apreciação vem alargar o âmbito de atuação dos tribunais,
nomeadamente, através de especificações quanto
ao conteúdo do ato a praticar nas situações em que a lei confere ao autor o
direito a um ato com um determinado conteúdo, criando, deste modo, um dever
estrito da Administração executar, objetivamente, um ato materialmente moldado
e definido. Alexandra Leitão em COMENTÁRIOS
À REVISÃO DO ETAF E DO CPTA veio constatar que a inserção deste n.º 3 não
traz nada de novo, na medida em que “apenas esclarece o que já resultada do n.º
2 do mesmo Artigo”, pois a procedência de uma ação de condenação à
prática só garante ao particular a condenação da Administração na prática do
ato com o conteúdo por ele pretendido quando esse conteúdo seja totalmente
vinculado, sob pena de violação do princípio da separação. Ou, em minha opinião
(e se quisermos ir mais longe), parece-me que decorre não apenas do n.º 2 mas
logo da cláusula geral do n.º 1, cuja estatuição é conforme e, nesses termos,
considero desnecessária a inclusão da parte final do n.º 3.
Vale dizer, como se constata, que existe uma
gama de situações que deve variar consoante o grau de concretização com que o
dever de atuar resulta das normas jurídicas aplicáveis, conforme o concreto ato
devido controvertido.
Cabe tecer breves notas sobre
direito comparado nesta temática. No direito inglês, sempre vigorou um sistema
completo de garantias dos particulares contra as ilegalidades e abusos da
Administração Pública, pelo que, assim sendo, o tribunal dispõe de poderes de
plena jurisdição face à mesma desde que a interpele e esta se recuse (aí então,
haverá lugar a uma sentença condenatória). Já no que concerne ao direito
germânico, quando a recusa ou omissão for ilegal e o particular lesado nos seus
direitos, o tribunal condena, igualmente, a administração a “um fazer” (tun).
Sublinho o facto de não haver cláusula igual à que consta da alínea c) do nosso
Art. 67.º, o que revela, desde já, que o legislador português se encontra a “um
passo à frente” da corrente europeia.
De facto, em concordância com Vasco
Pereira da Silva, a consagração deste tipo de sentenças significa o ultrapassar
de velhos traumas do contencioso administrativo, decorrentes da passagem do
processo ao ato para o juízo sobre a relação jurídica, através da atribuição ao
tribunal de um papel ativo e não meramente reativo no julgamento do litígio,
pois, a sentença de condenação não tem por objeto o ato administrativo mas sim
o direito do particular.
Com a presente exposição, quis
evidenciar que, por vezes, existe uma linha bastante ténue que separa o poder
judicial, correspondente a um papel interventivo dos tribunais, do dever de
administrar em prossecução do interesse público. Pois o direito (tal como as
situações da vida) é extremamente complexo, envolvendo ponderações que conjugam
ideias, aparentemente, incompatíveis. Sublinhe-se o “aparentemente”, uma vez
que, neste caso, é um mito considerar que existe uma impossibilidade de impor
judicialmente à Administração a adoção de atos administrativos, sem que se
assine uma habilitação geral aos juízes para se substituírem àquela no
exercício das respetivas funções. Pois, tal como afirma Vasco Pereira da Silva,
uma coisa é condenar a administração, o que decorre da preterição de poderes
legais vinculativos (e isso, sim, corresponde à tarefa de julgar), outra coisa
é o tribunal invadir o domínio das escolhas remetidas por lei para a
responsabilidade da Administração no domínio da discricionariedade
administrativa – tarefa de administrar.
Contudo, deparamo-nos com uma
metamorfose gradual nesta sede do contencioso administrativo, designadamente,
quando estão em causa comportamentos que lesam direitos dos particulares, uma
vez que subjaz, aqui, uma lógica de que o direito do primeiro é o dever do
segundo. Há, se quisermos, uma bilateralidade que exige a intervenção do poder
judicial como forma de reação a uma discricionariedade administrativa que
vigora à margem da lei e não como modo de realização do direito no caso
concreto.
Parece-me, terminando, que
quando isto aconteça, o princípio da separação de poderes não cai no abismo.
Trata-se, apenas e somente, de um Contencioso Administrativo de plena
jurisdição.
BIBLIOGRAFIA
CADILHA, António, Os poderes de pronúncia
jurisdicionais na acção de condenação à prática de acto devido e os limites
funcionais da Justiça Administrativa, in Estudos em Homenagem ao
Professor Doutor Sérvulo Correia, Vol.
III, 2010
SILVA, Vasco Pereira da – O Contencioso no Divã da Psicanálise.
Almedina, 2009
ALMEIDA, Mário Aroso de – Manual de Processo Administrativo, 2ª
Ed., Almedina, 2016