A
ação de condenação à prática do ato administrativo devido
No presente comentário
procurarei retratar a figura da ação de condenação à prática do ato devido, no
que diz respeito ao seu objeto, pressupostos de aplicação, legitimidade para a
pática da mesma, quais os prazos, e por fim, farei algumas considerações finais.
Antes de mais, procurarei fazer um enquadramento constitucional e perceber a
sua relação com o princípio da separação de poderes. Para mais facilmente nos
localizarmos, podemos encontrar referência a esta ação em várias normas do
CPTA, nomeadamente no art.º 2, nº 2 al. b’, art.º 37, nº 1, al. b’ do CPTA.
Mais concretamente, encontramo-la regulada no art.º 66 e seguintes do mesmo
diploma.
O
seu enquadramento constitucional
Com a reforma de 1997, o art.º
268 foi reformulado, mais concretamente os seus números 4 e 5. Nesta reforma e
com estas alterações, o princípio da tutela jurisdicional efetiva foi
reafirmado, tendo sido feito um aprofundamento da proteção das posições jurídicas
ativas dos cidadãos face à Administração. Este principio da tutela
jurisdicional exige que, a todo e qualquer interesse do particular digno de
proteção jurídica exista um meio de proteção e satisfação junto da jurisdição administrativa.
Assim, o art.º 268 da CRR traduz o principio de que a cada direito deve
corresponder uma ação, como forma de tutela desses mesmo direito e interesses. Desta
feita, a consagração da possibilidade dos administrados interpelarem a Administração
no sentido de esta cumprir, obtendo a condenação à pratica do ato devido,
passou a estar constitucionalmente prevista, funcionando como meio de defesa
dos administrados, titulares de direitos e interesses dignos de proteção.
Dando cumprimento ao
imperativo decorrente do art.º 268 da CRP, o CPTA, nos seus art.º 66 e
seguintes, confere aos tribunais administrativos o poder de procederem à
determinação da prática de atos administrativos legalmente devidos. A ação à
condenação da Administração à prática do ato devido é visto como uma das
maiores mudanças do paradigma do Contencioso Administrativo, uma vez que, se
antes apenas tínhamos ações de anulação, onde se demonstrava a limitação dos
poderes do juiz, agora passamos a ter ação condenação.
Posso concluir este ponto
seguindo o entendimento de Mário Aroso de Almeida que entende que a consagração
da possibilidade de condenar a Administração retrata uma evolução que começou
pela subordinação da Administração Pública a regras jurídicas e à fiscalização
dessas regras por órgãos judiciais, chegando-se ao momento de conferir aos
tribunais administrativos os poderes de plane jurisdição[1].
Relação
com o princípio da separação de poderes
Alguns autores têm-se
manifestado contra este poder de condenação da administração com a
incompatibilidade com o principio da separação de poderes. Para esta corrente
doutrinária, maioritariamente defendida em França, este poder de condenação da
Administração à prática de atos devidos embatia com este princípio base do
Estado de Direito, por defenderem que, com a concretização deste principio,
nunca seria possível a existência do juiz-administrativo a emitir ordens que
orientassem a atividade administrativa, cabendo-lhes unicamente o poder de
anular atos administrativos. É curioso que se defenda esta teoria em França,
onde era apontada grande “promiscuidade” entre o poder administrativo e o poder
jurisdicional, o que, a nosso ver, essa situação sim, levantava sérias dúvidas
em relação ao respeito pelo principio da separação de poderes. Segundo o Prof.
Vasco Pereira da Silva, estamos perante um “equivoco” pois quando um tribunal
condena a Administração a praticar um ato devido, não é o tribunal que se substitui
à Administração na prática desse ato, nem numa incursão do tribunal no espaço administrativo;
estamos perante a afirmação do principio da tutela jurisdicional efetiva que
permite que os administrados ajam contra a Administração por forma a assegurar
os seus direitos e interesses que consideram lesados pela ação ilegal ou
omissão por parte da Administração.[2]
O
objeto e pressupostos do processo de condenação à prática do ato devido
De acordo com o disposto
no art.º 66, nº 1 do CPTA, o administrado
pode “obter a condenação da entendida
competente à prática, dentro de determinado prazo, de um ato administrativo
igualmente omitido ou recusado”.
Para perceber o
objeto da ação de condenação à prática do ato devido, parece-me conveniente primeiramente
perceber o que é o ato devido. Para efeitos do contencioso administrativo, o
ato devido é aquele que, tendo existido uma recusa ou uma omissão por parte da Administração,
esse ato não tenha sido emitido quando deveria ter sido, mesmo estando perante
atos de conteúdo discricionário, desde que a emissão do ato possa ser exigível
na situação concreta. Este meio processual pode também ser utilizado quando
exista um ato positivo que não satisfaça a pretensão do administrado, ou não a
satisfaça na sua integralidade.
O objeto do
processo de condenação à prática de atos administrativos não se confunde com os
processos de impugnação de atos administrativos, pois não é delimitado por
referência aos concretos fundamentos em que se possa ter baseado o ato de
indeferimento eventualmente proferido[3]. Como refere o art.º 66, nº 2, “ainda que a prática do ato devido tenha sido expressamente recusada, o
objeto do processo é a pretensão do interessado e não o ato de indeferimento,
cuja eliminação da ordem jurídica resulta diretamente da pronuncia condenatória”;
sendo este o objeto do processo tanto estando perante um caso de omissão ilegal,
como estando perante um caso de ato de conteúdo negativo. A ação de condenação à prática do ato devido é
hoje uma componente essencial do principio da tutela jurisdicional pela e efetiva
dos direitos dos administrados face à Administração, sendo esta a vertente
subjetiva do Contencioso Administrativo neste tipo de ação. Consideramos assim
uma “fonteira” entre a ação de condenação e a ação de impugnação que tem, de
acordo com o art.º 50, nº 1 do CPTA, como objeto, a anulação ou a declaração de
ilegalidade do ato. Na mesma linha de pensamento, o art.º 71 do CPTA sublinha
que o tribunal não se limita a devolver a questão ao órgão administrativo competente,
tendo de se pronunciar sobre a pretensão material do interessado, impondo a
prática do ato devido; apurando a relação existente entre a Administração e o administrado,
por forma a perceber qual o dever da primeira e qual o direito a ser protegido
do segundo.
É relevante ainda
mencionar que, conforme menciona o art.º 70, nº 1 do CPTA, nos casos de inércia
ou de recusa da apreciação de requerimento, aquando a pendência do processo, seja
praticado um ato de indeferimento expresso, pode o autor alegar novos
fundamentos e oferecer diferentes meios de prova em favor da sua pretensão,
ampliando assim a causa de pedir. Se, ao invés, conforme resulta do art.º 70,
nº 3 do CPTA, se for praticado, também na pendencia da ação, um ato que não
satisfaça integralmente as pretensões do interessado, este pode pedir a condenação
à prática de outro ato, a anulação ou a declaração de nulidade do ato
praticado.
Segundo o art.º
67, nº 1, para a interposição da ação de condenação à pratica do ato devido,
deve o administrado apresentar um “requerimento que constitua o órgão competente
no dever de decidir” quando: i) não tenha sido proferida decisão dentro do
prazo legalmente estabelecido (art.º 67, nº 1 al. a’); ii) tenha sido
praticado ato administrativo de indeferimento (art.º 67, nº 1, al. b’, 1ª
parte); iii) recusa de apreciação do requerimento (art.º 67, n1, al. b, 2ª
parte). A reforma do Contencioso Administrativo de 2015 veio ainda permitir
a interposição desta ação de condenação à prática de ato devido em mais três
circunstancias, que são elas: iv) tenha sido praticado ato administrativo de
conteúdo positivo que não satisfaça integralmente a pretensão do interessado
(art.º 67, nº 1, al. c’); v) quando não tenha sido cumprido o dever de emitir
um ato administrativo que resultava diretamente da lei; vi) quando se pretenda
obter a substituição de um ato administrativo de conteúdo positivo. Note-se que
para as situações previstas em v) e vi) a condenação à prática do ato administrativo
pode ser pedida sem ter sido apresentado requerimento previamente.
Mário Aroso de Almeida
considera que esta figura veio resolver o problema da lacuna existente até
agora em regra suprida pela figura do indeferimento tácito, pois até ao
momento, a comunidade jurídica via-se “forçada” a aceitar a existência de um indeferimento
tácito face ao silencio da Administração, como única via de receção da
anulação, o qual exigia como pressuposto a existência de um ato administrativo
a impugnar[4].
Legitimidade
ativa e passiva
Desde logo, tem legitimidade
para pedir a condenação à prática do ato devido quem, antes de mais, alegue
ser titular de um direito ou interesse legalmente protegido, dirigido à emissão
desse ato: é o que decorre do art.º 68, nº 1, al. a’ do CPTA. O mesmo
artigo atribui ainda legitimidade ativa ao Ministério Público, enquanto
titular da ação publica ou no contexto de ação popular, ou seja, quando se
esteja a defender direitos fundamentais e valores constitucionalmente
relevantes, como refere a al. b’; às pessoas coletivas, públicas ou privadas,
quando estejam em causa direitos e interesses que lhes cumpra defender; aos órgãos
administrativos, quando diga respeito a condutas de outros órgãos da Administração
Pública que comprometam as condições de exercício de competências e pelas quais
estes órgãos sejam diretamente responsáveis; aos presidentes de órgãos colegiais,
relativamente à conduta do respetivo órgão, assim como outras autoridades,
em defesa da legalidade administrativa; e às demais pessoas e entidades
mencionadas no art.º 9, nº 2 do CPTA[5].
Relativamente à
legitimidade passiva, o nº 2 do art.º 68 refere que além da entidade responsável
pela situação de ilegalidade, são obrigatoriamente demandados os
contrainteressados, em litisconsórcio necessário passivo.
Prazo
de propositura da ação
O prazo para a
propositura da ação encontra-se regulado no art.º 69 do CPTA, e este depende de
ter ocorrido inércia por parte da Administração ou indeferimento por parte do órgão
competente. Caso se tenha tratado de omissão, resulta do nº 1 que o prazo será
de um ano, desde o termo do prazo legal estabelecido para a emissão do ato
ilegalmente omitido. No caso de se tratar de um ato indeferido, recusado ou de pretensão
dirigida à substituição de um ato de conteúdo negativo, o prazo, refere o nº 2,
será de três meses.
Considerações
finais
A meu ver, a
possibilidade de interpor uma ação de condenação à pratica de atos devidos é
francamente positiva pois configura-se decisiva para a tutela jurisdicional efetiva
e plena dos administrados. Arrisco até dizer que o legislador demonstra alguma preferência
pela ação de condenação ao invés da ação de anulação devido ao referido no art.º
51, nº 4 do CPTA, pois é dito que “se
contra um ato de indeferimento ou de recusa de apreciação de requerimento não
tiver sido deduzido o adequado pedido de condenação à prática do ato devido, o
tribunal convida o autor a substituir a petição, para o efeito de deduzir o referido
pedido”. Em contrapartida, o legislador acautelou-se ao delimitar o poder
discricionário da Administração, por forma a que esta assuma uma atitude mais
ponderada.
O art.º 71 do CPTA assume
um papel de elevada relevância ao delimitar os poderes de pronúncia do
tribunal, pois o alargamento dos poderes do juiz administrativo pode trazer consigo
o risco de intromissão no cerne de atuação da Administração. Desta forma,
delimitando-se os poderes de pronúncia do tribunal visa garantir-se que não
ocorre nenhuma ultrapassagem dos limites funcionais da função jurisdicional
preservando, assim, o equilíbrio com o principio da separação de poderes.
[1] Mário Aroso de Almeida, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos,
Almedina, pág. 163.
[2] Vasco Pereira da Silva, “O
Contencioso Administrativo no Divã da Psicanalise”, Coimbra, 2ª edição, pág.
377 e 378.
[3] Mário Aroso de Almeida, Manual de
Processo Administrativo, Almedina, 2ª edição, pág. 89.
[4] Mário Aroso de Almeia, O Novo
Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, pág. 168 e
seguintes.
[5] Refere o nº 2 do art.º 9 do CPTA
que: “Independentemente de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa,
bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa,
as autarquias locais e o Ministério Público têm legitimidade para
propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e
cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos,
como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a
qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões
Autónomas e das autarquias locais, assim como para promover a execução das
correspondentes decisões jurisdicionais.”
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