domingo, 20 de novembro de 2016

A ação de condenação à prática do ato administrativo devido


A ação de condenação à prática do ato administrativo devido

No presente comentário procurarei retratar a figura da ação de condenação à prática do ato devido, no que diz respeito ao seu objeto, pressupostos de aplicação, legitimidade para a pática da mesma, quais os prazos, e por fim, farei algumas considerações finais. Antes de mais, procurarei fazer um enquadramento constitucional e perceber a sua relação com o princípio da separação de poderes. Para mais facilmente nos localizarmos, podemos encontrar referência a esta ação em várias normas do CPTA, nomeadamente no art.º 2, nº 2 al. b’, art.º 37, nº 1, al. b’ do CPTA. Mais concretamente, encontramo-la regulada no art.º 66 e seguintes do mesmo diploma.

O seu enquadramento constitucional
Com a reforma de 1997, o art.º 268 foi reformulado, mais concretamente os seus números 4 e 5. Nesta reforma e com estas alterações, o princípio da tutela jurisdicional efetiva foi reafirmado, tendo sido feito um aprofundamento da proteção das posições jurídicas ativas dos cidadãos face à Administração. Este principio da tutela jurisdicional exige que, a todo e qualquer interesse do particular digno de proteção jurídica exista um meio de proteção e satisfação junto da jurisdição administrativa. Assim, o art.º 268 da CRR traduz o principio de que a cada direito deve corresponder uma ação, como forma de tutela desses mesmo direito e interesses. Desta feita, a consagração da possibilidade dos administrados interpelarem a Administração no sentido de esta cumprir, obtendo a condenação à pratica do ato devido, passou a estar constitucionalmente prevista, funcionando como meio de defesa dos administrados, titulares de direitos e interesses dignos de proteção.
Dando cumprimento ao imperativo decorrente do art.º 268 da CRP, o CPTA, nos seus art.º 66 e seguintes, confere aos tribunais administrativos o poder de procederem à determinação da prática de atos administrativos legalmente devidos. A ação à condenação da Administração à prática do ato devido é visto como uma das maiores mudanças do paradigma do Contencioso Administrativo, uma vez que, se antes apenas tínhamos ações de anulação, onde se demonstrava a limitação dos poderes do juiz, agora passamos a ter ação condenação.
Posso concluir este ponto seguindo o entendimento de Mário Aroso de Almeida que entende que a consagração da possibilidade de condenar a Administração retrata uma evolução que começou pela subordinação da Administração Pública a regras jurídicas e à fiscalização dessas regras por órgãos judiciais, chegando-se ao momento de conferir aos tribunais administrativos os poderes de plane jurisdição[1].

Relação com o princípio da separação de poderes
Alguns autores têm-se manifestado contra este poder de condenação da administração com a incompatibilidade com o principio da separação de poderes. Para esta corrente doutrinária, maioritariamente defendida em França, este poder de condenação da Administração à prática de atos devidos embatia com este princípio base do Estado de Direito, por defenderem que, com a concretização deste principio, nunca seria possível a existência do juiz-administrativo a emitir ordens que orientassem a atividade administrativa, cabendo-lhes unicamente o poder de anular atos administrativos. É curioso que se defenda esta teoria em França, onde era apontada grande “promiscuidade” entre o poder administrativo e o poder jurisdicional, o que, a nosso ver, essa situação sim, levantava sérias dúvidas em relação ao respeito pelo principio da separação de poderes. Segundo o Prof. Vasco Pereira da Silva, estamos perante um “equivoco” pois quando um tribunal condena a Administração a praticar um ato devido, não é o tribunal que se substitui à Administração na prática desse ato, nem numa incursão do tribunal no espaço administrativo; estamos perante a afirmação do principio da tutela jurisdicional efetiva que permite que os administrados ajam contra a Administração por forma a assegurar os seus direitos e interesses que consideram lesados pela ação ilegal ou omissão por parte da Administração.[2]

O objeto e pressupostos do processo de condenação à prática do ato devido
De acordo com o disposto no art.º 66, nº 1 do CPTA, o administrado pode “obter a condenação da entendida competente à prática, dentro de determinado prazo, de um ato administrativo igualmente omitido ou recusado”.
Para perceber o objeto da ação de condenação à prática do ato devido, parece-me conveniente primeiramente perceber o que é o ato devido. Para efeitos do contencioso administrativo, o ato devido é aquele que, tendo existido uma recusa ou uma omissão por parte da Administração, esse ato não tenha sido emitido quando deveria ter sido, mesmo estando perante atos de conteúdo discricionário, desde que a emissão do ato possa ser exigível na situação concreta. Este meio processual pode também ser utilizado quando exista um ato positivo que não satisfaça a pretensão do administrado, ou não a satisfaça na sua integralidade.
O objeto do processo de condenação à prática de atos administrativos não se confunde com os processos de impugnação de atos administrativos, pois não é delimitado por referência aos concretos fundamentos em que se possa ter baseado o ato de indeferimento eventualmente proferido[3]. Como refere o art.º 66, nº 2, “ainda que a prática do ato devido tenha sido expressamente recusada, o objeto do processo é a pretensão do interessado e não o ato de indeferimento, cuja eliminação da ordem jurídica resulta diretamente da pronuncia condenatória”; sendo este o objeto do processo tanto estando perante um caso de omissão ilegal, como estando perante um caso de ato de conteúdo negativo.  A ação de condenação à prática do ato devido é hoje uma componente essencial do principio da tutela jurisdicional pela e efetiva dos direitos dos administrados face à Administração, sendo esta a vertente subjetiva do Contencioso Administrativo neste tipo de ação. Consideramos assim uma “fonteira” entre a ação de condenação e a ação de impugnação que tem, de acordo com o art.º 50, nº 1 do CPTA, como objeto, a anulação ou a declaração de ilegalidade do ato. Na mesma linha de pensamento, o art.º 71 do CPTA sublinha que o tribunal não se limita a devolver a questão ao órgão administrativo competente, tendo de se pronunciar sobre a pretensão material do interessado, impondo a prática do ato devido; apurando a relação existente entre a Administração e o administrado, por forma a perceber qual o dever da primeira e qual o direito a ser protegido do segundo.
É relevante ainda mencionar que, conforme menciona o art.º 70, nº 1 do CPTA, nos casos de inércia ou de recusa da apreciação de requerimento, aquando a pendência do processo, seja praticado um ato de indeferimento expresso, pode o autor alegar novos fundamentos e oferecer diferentes meios de prova em favor da sua pretensão, ampliando assim a causa de pedir. Se, ao invés, conforme resulta do art.º 70, nº 3 do CPTA, se for praticado, também na pendencia da ação, um ato que não satisfaça integralmente as pretensões do interessado, este pode pedir a condenação à prática de outro ato, a anulação ou a declaração de nulidade do ato praticado.

Segundo o art.º 67, nº 1, para a interposição da ação de condenação à pratica do ato devido, deve o administrado apresentar um “requerimento que constitua o órgão competente no dever de decidir” quando: i) não tenha sido proferida decisão dentro do prazo legalmente estabelecido (art.º 67, nº 1 al. a’); ii) tenha sido praticado ato administrativo de indeferimento (art.º 67, nº 1, al. b’, 1ª parte); iii) recusa de apreciação do requerimento (art.º 67, n1, al. b, 2ª parte). A reforma do Contencioso Administrativo de 2015 veio ainda permitir a interposição desta ação de condenação à prática de ato devido em mais três circunstancias, que são elas: iv) tenha sido praticado ato administrativo de conteúdo positivo que não satisfaça integralmente a pretensão do interessado (art.º 67, nº 1, al. c’); v) quando não tenha sido cumprido o dever de emitir um ato administrativo que resultava diretamente da lei; vi) quando se pretenda obter a substituição de um ato administrativo de conteúdo positivo. Note-se que para as situações previstas em v) e vi) a condenação à prática do ato administrativo pode ser pedida sem ter sido apresentado requerimento previamente.

Mário Aroso de Almeida considera que esta figura veio resolver o problema da lacuna existente até agora em regra suprida pela figura do indeferimento tácito, pois até ao momento, a comunidade jurídica via-se “forçada” a aceitar a existência de um indeferimento tácito face ao silencio da Administração, como única via de receção da anulação, o qual exigia como pressuposto a existência de um ato administrativo a impugnar[4].

Legitimidade ativa e passiva
Desde logo, tem legitimidade para pedir a condenação à prática do ato devido quem, antes de mais, alegue ser titular de um direito ou interesse legalmente protegido, dirigido à emissão desse ato: é o que decorre do art.º 68, nº 1, al. a’ do CPTA. O mesmo artigo atribui ainda legitimidade ativa ao Ministério Público, enquanto titular da ação publica ou no contexto de ação popular, ou seja, quando se esteja a defender direitos fundamentais e valores constitucionalmente relevantes, como refere a al. b’; às pessoas coletivas, públicas ou privadas, quando estejam em causa direitos e interesses que lhes cumpra defender; aos órgãos administrativos, quando diga respeito a condutas de outros órgãos da Administração Pública que comprometam as condições de exercício de competências e pelas quais estes órgãos sejam diretamente responsáveis; aos presidentes de órgãos colegiais, relativamente à conduta do respetivo órgão, assim como outras autoridades, em defesa da legalidade administrativa; e às demais pessoas e entidades mencionadas no art.º 9, nº 2 do CPTA[5].
Relativamente à legitimidade passiva, o nº 2 do art.º 68 refere que além da entidade responsável pela situação de ilegalidade, são obrigatoriamente demandados os contrainteressados, em litisconsórcio necessário passivo.

Prazo de propositura da ação
O prazo para a propositura da ação encontra-se regulado no art.º 69 do CPTA, e este depende de ter ocorrido inércia por parte da Administração ou indeferimento por parte do órgão competente. Caso se tenha tratado de omissão, resulta do nº 1 que o prazo será de um ano, desde o termo do prazo legal estabelecido para a emissão do ato ilegalmente omitido. No caso de se tratar de um ato indeferido, recusado ou de pretensão dirigida à substituição de um ato de conteúdo negativo, o prazo, refere o nº 2, será de três meses.

Considerações finais
A meu ver, a possibilidade de interpor uma ação de condenação à pratica de atos devidos é francamente positiva pois configura-se decisiva para a tutela jurisdicional efetiva e plena dos administrados. Arrisco até dizer que o legislador demonstra alguma preferência pela ação de condenação ao invés da ação de anulação devido ao referido no art.º 51, nº 4 do CPTA, pois é dito que “se contra um ato de indeferimento ou de recusa de apreciação de requerimento não tiver sido deduzido o adequado pedido de condenação à prática do ato devido, o tribunal convida o autor a substituir a petição, para o efeito de deduzir o referido pedido”. Em contrapartida, o legislador acautelou-se ao delimitar o poder discricionário da Administração, por forma a que esta assuma uma atitude mais ponderada.
O art.º 71 do CPTA assume um papel de elevada relevância ao delimitar os poderes de pronúncia do tribunal, pois o alargamento dos poderes do juiz administrativo pode trazer consigo o risco de intromissão no cerne de atuação da Administração. Desta forma, delimitando-se os poderes de pronúncia do tribunal visa garantir-se que não ocorre nenhuma ultrapassagem dos limites funcionais da função jurisdicional preservando, assim, o equilíbrio com o principio da separação de poderes.



[1] Mário Aroso de Almeida, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, pág. 163.
[2] Vasco Pereira da Silva, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanalise”, Coimbra, 2ª edição, pág. 377 e 378.
[3] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2ª edição, pág. 89.  
[4] Mário Aroso de Almeia, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, pág. 168 e seguintes.
[5] Refere o nº 2 do art.º 9 do CPTA que: “Independentemente de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, assim como para promover a execução das correspondentes decisões jurisdicionais.”

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